Criança e Adolescente

05/08/2015

ECA 25 ANOS - Avanços e Desafios

 

O Estatuto é considerado um documento fundador no Brasil de um novo olhar sobre a população infantil e adolescente. Esta lei, aprovada em meio a intensos debates sobre liberdade, democracia e Direitos Humanos, revolucionou percepções e práticas relativas às crianças e aos adolescentes. O Estatuto marca uma importante mudança de paradigma, vindo a refutar antigas concepções de infância e adolescência associadas à passividade, ou à imagem da criança como alguém que “um dia será” um sujeito [nota 1].

O Brasil é um país que tem muitos recursos e sua população infantil e adolescente é seguramente uma de suas maiores riquezas. São cerca de 65 milhões de cidadãos brasileiros até os 18 anos de idade – 20 milhões até os 6 anos de idade.

Neste momento de intenso debate sobre a redução da maioridade penal e claro ataque ao ECA, cabe perguntar o que pode ser feito para evitar retrocessos na conquista de garantia dos direitos da criança. Um caminho é, de fato, priorizar a criança, um dos lemas do ECA, com foco total sobre os recursos e meios necessários para assegurar a implementação das ações que constam das políticas públicas existentes [nota 2]. Essas ações, visando à promoção e universalização de direitos, devem se dar em âmbito intersetorial, envolvendo, além da saúde, educação, cultura e assistência social, todas as áreas que dizem respeito ao bem-estar da população infantil. É também crucial identificar e combater as condições que favoreçam a perpetuação de situações de risco e vulnerabilidade social que afetam crianças, adolescentes e suas famílias.

Nas últimas décadas, foi notório o avanço no campo da saúde e da educação infantil, destacando-se a redução da mortalidade infantil e a ampliação da educação infantil, englobando creches e pré-escolas, como período inicial da educação básica, o que favoreceu o reconhecimento da importância desta etapa do processo educativo e um aumento do número de matrículas de crianças.

No que se refere aos desafios que ainda restam, destacam-se as disparidades regionais e aquelas que se referem às piores condições de vida para certos grupos de crianças, como as crianças que se encontram em famílias atingidas por extrema pobreza, as crianças negras, indígenas e aquelas com doenças graves, problemas de saúde mental e deficiências.

Apesar dos importantes avanços registrados nos últimos 25 anos, é preciso lembrar que há muito a realizar para fazer valer o direito à cidadania plena de crianças e adolescentes. É necessário criar espaços e mecanismos que evitem possíveis retrocessos e que viabilizem ampla participação nos processos de construção social no contexto de uma sociedade que se quer mais justa e democrática.

Irene Rizzini

[Fonte: Blog Andi - Comunicação e Direitos - 31/07/2015]

 

Notas do texto:

SDH. 20 anos do Estatuto. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos; RJ: CIESPI, 2010.

A este respeito ver publicações da RNPI Rede Nacional da primeira Infância; as diversas políticas no escopo do SUS e do SUAS. No Rio de Janeiro, o PMPI, Plano Municipal da Primeira Infância (CMCDA/Rio, novembro 2013).

 

ECA 25 ANOS - Primeira Infância

As crianças que nasceram com o ECA, em 1990, estão, hoje, com vinte e cinco anos. Com as que nasceram depois, somam cerca de 80 milhões. Isto significa que 40% da população brasileira atual nasceram e cresceram sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente! Dentre esses, 58 milhões – com idade entre 0 e 18 anos – estão, neste momento, sob o olhar da proteção integral. E gozam do direito à prioridade absoluta na garantia dos seus direitos.

Quanto o ECA influiu em suas vidas? Quanto ele nos instruiu sobre a “peculiar” fase de crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescentes? Comparando com o período em que essa faixa etária era vista pelo enfoque do Código de Menores, é possível constatar alterações significativas no modo de as pessoas, as organizações sociais e o aparelho do Estado pautarem seus atos, julgamentos, iniciativas e políticas em relação à criança e aos adolescentes?

Este breve artigo reflete sobre as relações entre o ECA e a Primeira Infância – fase da vida das crianças até seis anos de idade.

Por mais que se diga que o ECA se ocupa mais do adolescente do que da criança – o que é verdade, mas de certa forma compreensível, em função do contexto social e histórico em que foi construído – o que ele estabelece relativamente às crianças é revolucionário e inovador, continua atual e necessário, mesmo depois de um quarto de século de vigência. Porque seu cerne é feito de concepções, princípios e diretrizes estruturantes. Ele não quer “embelezar a superfície”, mas criar outro conceito e outra forma de integração da criança e do adolescente na sociedade, baseada no reconhecimento deles como pessoas, sujeitos de direito, cidadãos em processo de formação e já capazes de participar.

Tais princípios e diretrizes não foram concebidos por um pequeno grupo de especialistas ou militantes sociais num gabinete fechado, nem fruto de uma pretensa inspiração superior. Eles vinham nascendo e se explicitando no seio da sociedade, nos âmbitos das ciências sociais e das práticas profissionais da sociologia, da psicologia, do direito, da saúde, da educação, da assistência social, por várias décadas. Na Assembleia Nacional Constituinte eles ganharam espaço formal, institucional e jurídico e foram inscritos na Constituição Federal de 1988, como resultado de uma ampla participação social. O art. 227 é o texto emblemático que fixa o paradigma de todo o Estatuto.

As resistências e contraposições surgem de grupos remanescentes do passado, ainda enamorados do “código de menores”, e de visões obtusas que se recusam a ver a criança e o adolescente como pessoas em “peculiar processo de desenvolvimento”, abertas para a vida, ansiosas pelos horizontes humanos. Talvez, ainda, não chegaram a compreender o que significa essa expressão e as decorrências que ela determina na forma de acolher, proteger e promover as crianças e adolescentes.

Os pontos que, a meu ver, marcam um novo tempo para o agir da família, da sociedade e do Estado em relação à criança na Primeira Infância são:

  1. Proteção Integral (art. 1º). Substitui-se o estreito limite do cuidado parcial, de uma ou outra área de atenção pela atenção e cuidado global da criança como pessoa completa. Proteção integral é diferente da soma de todas as áreas ou direitos. Essencialmente, é a visão da criança como pessoa, sujeito social de direito.
  2. A criança é considerada sujeito social de direitos, como toda pessoa humana. Não é segregada para um mundo “infantil” no qual devesse ser vista como incompleta, frágil, ou “coitadinha” a ser protegida das possíveis ou reais agressões externas. O Estatuto afirma que a criança goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além daqueles específicos do ser criança e de estar num processo de formação e desenvolvimento típico da idade. Abandona-se a dicotomia criança – adulto nos itens dignidade, respeito, direitos… (arts. 3º e 4º caput e arts. 5º e 6º). O Projeto de Lei nº 6.998/2013 vem complementar esse olhar com foco na Primeira Infância.
  3. A definição do contorno dentro do qual se aplica o princípio da prioridade absoluta (art. 227 da CF): primazia de receber proteção e socorro; precedência de atendimento nos serviços públicos e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e juventude (art. 4º, parágrafo único)
  4. A determinação de formular políticas sociais públicas para promover a proteção integral. Embora ela devesse ser suficiente, dada sua clareza e abrangência, para que as crianças na Primeira Infância tivessem a completa atenção do Estado, grande parcela das crianças fica na sombra, no anonimato, na berlinda dos orçamentos públicos e das políticas sociais. O “discurso” está pleno de críticas ao menoscabo das crianças frente à atenção dada às demandas da adolescência, em grande parte incrementadas pela mídia e pelas cobranças da sociedade. Por isso, o PL 6.998/2013 procura abrir o foco do ECA para dar mais visibilidade à Primeira Infância.
  5. A original instituição de um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. Este é, sem dúvida, o ponto mais alto do ECA, porque cria uma estrutura de instituições e serviços abrangente de todos os direitos em todas as circunstâncias da vida desses cidadãos. Esse sistema confere permanência, autonomia e autogestão à proteção integral. Ele deve funcionar segundo o conceito de redes de organizações comprometidas e responsáveis para que toda criança e adolescente tenham desenvolvimento “sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (art. 7º).
  6. A atenção para a individualidade da criança e do adolescente, respeitando a diversidade. Para o ECA, não há uma criança padrão, um paradigma universal, um modelo a ser imitado no crescimento e desenvolvimento de cada indivíduo. Tanto que o artigo que “define” criança e adolescente se atém ao critério etário, sem caracterizações, adjetivações ou ubicação histórica ou sociocultural. E sim crianças concretas, que, desde seu contexto familiar, comunitário, étnico, religioso, social, enfim, cultural, avançam em personalização, em autorrealização, na convivência familiar e comunitária, contando com a proteção da família, da sociedade e do Estado.

Todo o Estatuto está impregnado desta concepção, de forma extensiva e difusa, e pode-se vê-la em diversos itens. Um deles é o art. 28, § 6º, I, que, referindo-se às crianças indígenas e remanescentes quilombolas, preceitua que “sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições…”.

No direito de a criança ser ouvida, o ECA é tímido e parou aquém da Convenção dos Direitos da Criança, das Nações Unidas. Mas já faz uma breve sinalização de que também esse item deve ser considerado. Não é só o adulto que fala, seja ele o pai, a mãe, o cuidador, o conselheiro tutelar, o juiz… Não são apenas eles que têm voz, interpretação e decisão sobre os assuntos de interesse da criança. Também ela tem o que dizer e deve ser ouvida (art. 28, § 1º).

O Projeto de Lei nº 6.998/2013 determina um avanço enorme na concepção da capacidade e no direito da criança, desde a Primeira Infância, de participar e de ser ouvida e compreendida em suas formas de expressão ou suas “diferentes linguagens”, em tudo o que lhe diz respeito.

Os vinte e cinco anos de ECA foram produtivos na implantação e implementação dos princípios constitucionais relativos à criança nas políticas públicas e nas relações sociais. Ficaram para trás, bem longe, as roupas esfarrapadas com que o Código de Menores e a representação social da criança vestiam esses cidadãos e os dividiam em dois grupos – “criança” e “menor”. Mas não é hora de coroar o Estatuto com louros de vitória – talvez esta nunca seja completa e definitiva – porque riscos de retrocesso surgem de vez em quando, na legislação e em políticas de assistência social e educação infantil. Isso, no entanto, não enfraquece o ECA nem nosso compromisso político com a criança e o adolescente na garantia de seus direitos. Bem escreveu o poeta: “Poderão cortar todas as flores, mas não acabarão jamais com a primavera“ (Pablo Neruda).

Que os 80 milhões de brasileiros que estão vivendo a infância, a adolescência e a juventude vejam no ECA um farol que iluminou mentalidades, apontou um novo horizonte e sinalizou como a família, a sociedade e o Estado devem atuar para que seja assegurado a cada criança e adolescente o cumprimento de cada um e todos os seus direitos.

Vital Didonet

[Fonte: Blog Andi - Comunicação e Direitos - 04/08/2015]

 

Sobre os autores:

Irene Rizzini:
Irene Rizzini é professora e pesquisadora da PUC-Rio, e diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI). Pós-doutora pela Universidade de Notre Dame, Indiana, EUA, doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), com mestrado em serviço social (School of Social Service Administration, Universidade de Chicago) e graduação em psicologia.

Vital Didonet:
Vital Didonet, educador e assessor legislativo da Rede Nacional Primeira Infância.

 

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Referências:   (links externos)
»   ANDI - Comunicação e Direitos
»   Blog ANDI

 

 

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